O terço cantado

28/05/2015 18:28

Cristina Rolim Wolffenbüttel


 

    A religiosidade popular na Região de Montenegro é bastante marcante. Várias são as maneiras utilizadas pelas comunidades, a fim de propagar as tradições e, acima de tudo, garantir a perenidade das crenças locais. O Terço Cantado pode exemplificar esta afirmação. Espécie de cerimônia religiosa, o terço é coordenado por um capelão local que dirige o grupo de rezadores, puxando os cantos e controlando cada momento do terço (CÂMARA CASCUDO, 1984; SOUZA, 1966).

    O Terço Cantado é uma manifestação religiosa de origem portuguesa que consiste na realização de orações rezadas e cantadas, tanto por homens quanto por mulheres. Não há um local determinado para a realização do Terço. Este pode ser feito em cemitérios, no caso de um enterro ou em época de finados, em casas de parentes do falecido, em igrejas e capelas, enfim, onde fique melhor para a comunidade. Além de o local não ser pré-determinado, as datas de acontecimento também são variadas. Pode ocorrer um terço para missa de 7º dia de falecimento, de mês, de seis meses, de um ano, de aniversário do falecido ou de aniversário do falecimento.


  Quando o terço acontece em um enterro, uma terceira parte é acrescida à manifestação, o chamado Oferecimento Final. Neste oferecimento, o grupo reúne-se perto do caixão do falecido entoando canções chamadas incelências, que são em número de treze canções. As incelências ou, como é mais correto gramaticalmente, excelências, são cantos entoados para moribundos ou mortos. O canto é responsorial, sendo que o capelão e um acompanhante entoam a parte inicial. O canto responsorial é um tipo de canto coletivo no qual uma voz entoa uma parte da canção (o que pode ser realizado por algumas pessoas) e as demais vozes respondem a esta. Abaixo é apresentada a incelência, sendo esta a parte do Capelão e Acompanhantes.

 

 

Primeira Incelência, ai

Senhora “das fora”,

Visitando as almas

Que vão para a glória.

 

Depois que o capelão e seus acompanhantes entoam a estrofe – que poderia ser considerada a primeira parte, ou a parte A da canção – o lote realiza uma espécie de resposta, entoando a parte B. Esta parte, a exemplo dos cantos do capelão, repetir-se-á sempre a mesma, até a 13ª incelência.

 

 

O reino da glória

Para sempre, amém.

 

Depois de rezadas as doze estrofes das incelências, o terço é finalizado, com a menção às treze incelências. A canção entoada pelo capelão e acompanhantes resulta do seguinte:

 

 

As treze Incelência

“Pidimos” também.

O reino da glória

Para sempre amém.

 

Há anos atrás, em meados de 1993, tive a satisfação de entrevistar o Senhor Juceli Edevin da Mota1, conhecido como “Dega”, de Muda Boi, na região a qual denominei em minha pesquisa, Região de Montenegro (WOLFFENBÜTTEL, 1996). Na ocasião, ele explicou-me tudo sobre o terço cantado. Confesso que fiquei emocionada! Ao comentar comigo sobre as características da manifestação e sobre como a mesma acontecia, observei muita emoção em seu relato. De acordo com Dega, ele recebeu a “incumbência” de organizar o Terço Cantado de seu pai, no leito de morte! Ao relatar este fato, com visível emoção, ele chorou! Este fato mostra o quanto o terço Cantado é importante para a comunidade e, com certeza, para ela que a comandava.

Conforme relatos de Dega, o início da manifestação é marcado pelo toque de uma sineta, efetuado pelo capelão. Em seguida, todos fazem o sinal da Cruz, dizendo: “Em nome de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Amém”.

Depois, todo o terço é rezado, sendo que o capelão coordena sua realização, utilizando-se de um rosário. Quando o terço é finalizado, todos se ajoelham, o capelão toca a sineta e todos rezam a oração “Salve Rainha”. Esta é a parte inicial do evento, apenas rezada, sem a presença dos cantos.

Em seguida, todos ficam em pé e entoam a canção do “Anjo da Guarda”, que é entoado em forma responsorial. Esta maneira de cantar caracteriza-se por ser um canto coletivo no qual uma voz – neste caso o capelão e os acompanhantes – fazem um chamamento à resposta das demais vozes – neste caso, o lote. Deste modo, o capelão e os acompanhantes entoam o tema inicial da canção “Anjo da Guarda” e, em seguida, entra a outra voz – do lote – entoando uma resposta. É, assim, um jogo musical de “perguntas e respostas”, daí o nome responsorial.

 

 

 

Meu Anjo da Guarda, ai

Bem aventurado

De tanto convosco

Me tira, ai, os pecados.

 

 

 

 

E eu tanto convosco,

Me tira o pecado.

Após o canto “Anjo da Guarda”, todos rezam as orações “Pai Nosso” e “Ave Maria” passando, a seguir, ao canto “Oração de Nossa Senhora”, que também é responsorial. Nesta canção, o capelão e os acompanhantes entoam os versos iniciais, os quais são finalizados pelo lote.

 

 

 

 

Rezemos o terço

Da Virgem Maria

Que na vida e na morte

Será nossa guia.

 

 

 

 

Que na vida e na morte

Será nossa guia.

 

Para o conhecimento de todas as estrofes da “Oração de Nossa Senhora”, explicita-se os mesmos a seguir. Destaca-se que a forma de entoá-lo persiste como responsorial.

CAPELÃO E ACOMPANHANTES

2 Oh! Virgem! Oh! Virgem!

Quem Deus escolheu

Para ser mãe sua

Por ela nasceu.

 

LOTE

Para ser mãe sua

Por ela nasceu.

 

CAPELÃO E ACOMPANHANTES

3 Por ela nasceu

Por nosso bom Jesus

Salvai a todo mundo

Vinguemos a Cruz.

 

LOTE

Salvai a todo mundo

Vinguemos a Cruz.

 

CAPELÃO E ACOMPANHANTES

4 Vinguemos a Cruz

Do imenso Senhor

Deus fez o Divino

Seu mundo formou.

 

LOTE

Deus fez o Divino

Seu mundo formou.

 

CAPELÃO E ACOMPANHANTES

5 Seu mundo formou

Para nos salvar

E nós tão ingratos

Sempre a pecar.

 

LOTE

E nós tão ingratos

Sempre a pecar.

 

CAPELÃO E ACOMPANHANTES

6 Sempre a pecar

Sem nenhuma emenda tida

Ninguém considera

Que há de morrer.

 

LOTE

Ninguém considera

Que há de morrer.

 

 

CAPELÃO E ACOMPANHANTES

7 "Havemos morrer"

Que é para repousar

Aquele Senhor que

Nos há de julgar.

 

LOTE

Aquele Senhor que

Nos há de julgar.

 

CAPELÃO E ACOMPANHANTES

8 Nos há de julgar

Pedimos a Deus também

E o Reino da Glória

Para sempre. Amém.

 

LOTE

E o Reino da Glória

Para sempre. Amém.

 

Outros cantos seguem-se à “Oração de Nossa Senhora”, antes de se ouvir um novo toque da sineta. O terceiro canto é o “Benedito, Louvado Seja”, que segue as mesmas características de repetição dos versos finais.

 

 

Bendito, louvado seja, ai

O Rosário de Maria,

Se Deus não viesse ao mundo, ai

De nós o que seria.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Se Deus não viesse ao mundo, ai

De nós o que seria.

 

Segue-se a canção “Benedita Paixão” como o quarto canto do Terço Cantado. Constitui-se de dezoito estrofes compostas de dois versos. A forma de cantar persiste em responsorial, tendo seu início com o capelão e acompanhantes, seguidos na resposta pelo lote.

 

 

1 Bendito, louvado seja, ai, paixão do Redentor, ai.

2 Para nos livrar das “culpa”, padeceu por nosso amor, ai.

3 Padeceu grandes tormentos, ai, trabalhou penas e dor, ai.

4 Derramou seu santo sangue, ai, pra "remir" os “pecador”, ai.

5 "Contritou" arrependido, ai, grande dor no coração, ai.

6 Aqui estamos aos pés de Cristo, ai, pedindo a Deus perdão, ai.

7 Senhor Deus, dai-nos auxílio, ai, a união, paz e concórdia, ai.

8 Para que dizemos todos, ai, Senhor Deus de misericórdia, ai.

9 Misericórdia, ai meu Deus, de misericórdia, ai.

10 Misericórdia Vos pedem, ai, esses “grande pecador”, ai.

11 Pelas Vossas cinco chagas, ai, por Vosso divino amor, ai.

12 Por Vossa morte e paixão, ai, por sua paixão, Senhor, ai.

13 Padre Nosso, Ave Maria, ai, rezemos com devoção, ai.

14 Pelas mais benditas “alma”, ai que no purgatório estão, ai.

15 Padre Nosso, Ave Maria, ai, rezemos com alegria, ai.

16 Para que seja convosco, ai, meu Jesus, José e Maria, ai.

17 Pra Senhora “oferecemo”, ai, estas nossas “devoção”, ai.

18 Se vão para a glória, ai, Vossa seja a nossa salvação, ai.

 

 

 

Finalizada a canção “Bendita Paixão”, o capelão faz soar a sineta. Imediatamente, todos se ajoelham e, sempre com muita devoção, cada um bate com a mão direita em seu peito. Este gesto é uma espécie de ato penitencial que todos fazem em “busca do perdão dos pecados”, tanto do ente querido falecido, quanto pelos próprios pecados. A cantiga também é responsorial, e os versos finais são repetidos pelo lote. A seguir, a letra desta canção de grande fervor.

 

 

Senhor Deus!

Misericórdia!

Senhor Deus!

misericórdia.

Senhor Deus!

Eu pequei, Senhor!

Misericórdia!

Senhor Deus!

Pelas “Dor” de nossa mãe, Maria Santíssima!

Misericórdia!

Senhor Deus!

 

 

 

E, para finalizar o Terço Cantado, o capelão inicia o canto “Benedito”, utilizando um recurso de bater palmas para que todos se levantem, visto que todos estavam ajoelhados entoando a canção “Senhor Deus”, anterior. É um canto mais alegre, em comparação aos anteriores.

 

Bendito, louvado, seja.

O santíssimo sacramento.

Da puríssima Conceição.

Da Virgem Maria, Senhora nossa.

Concebida sem pecado

Original do primeiro instante.

Do seu seio, Senhor.

Amém, Jesus!

 

 

 

Há anos atrás, quando eu tive a satisfação de pesquisar o Terço Cantado, observei a grande importância que esta manifestação tem para a comunidade. Destaco, neste sentido, as localidades de Muda Boi – a partir da qual apresentei todo este relato, Serra Velha, Sobrado e Vapor Velho.

Em Serra Velha merece destaque a manifestação que acompanhei em meados do ano de 1993, na Escola Municipal de Ensino Fundamental Militão José de Azeredo, quando a comunidade escolar, reunida, fervorosamente praticava o terço. Figurava como propulsora da manifestação a diretora, Professora Rosângela da Rosa que, congregando professores, estudantes, pais e familiares, incentivava a realização do Terço Cantado. Para caracterizar a contribuição desta escola é apresentada, a seguir, a “Oração de Nossa Senhora”. A melodia segue a mesma apresentada anteriormente, diferindo a parte poética.

 

Crianças que Conduzem o Terço

1. Rezemos o terço

Da Virgem Maria,

Que na vida e na morte

Será nossa guia.

 

Restante das Crianças Participantes

Que na vida e na morte

Será nossa guia.

 

Crianças que Conduzem o Terço

2. Oh! Virgem! Oh! Virgem!

Que Deus te escolheu

Para ser Mãe sua,

Pois ela nasceu.

 

Restante das Crianças Participantes

Para ser Mãe sua,

Pois ela nasceu.

 

Crianças que Conduzem o Terço

3. Pois ela nasceu

Por nosso bom Jesus

Salvai a nós todos

Em “termo” da Cruz.

 

Restante das Crianças Participantes

Salvai a nós todos

Em “termo” da Cruz.

 

Crianças que Conduzem o Terço

4. Em “termo” da Cruz

Oh! De Deus sem temor

Deus como Divino

Seu mundo formou.

 

Restante das Crianças Participantes

Deus como Divino

Seu mundo formou.

 

Crianças que Conduzem o Terço

5. Seu mundo formou

E foi para nos salvar

E nós tão ingratos

Sempre a pecar.

 

Restante das Crianças Participantes

E nós tão ingratos

Sempre a pecar.

 

Crianças que Conduzem o Terço

6. Sempre a pecar

Sem nenhuma “imenda” ter

Ninguém considera

Que “havemos” de morrer.

 

Restante das Crianças Participantes

Ninguém considera

Que “havemos” de morrer.

 

 

 

Crianças que Conduzem o Terço

7. Que “havemos” de morrer

Que conta vamos dar?

Àquela Senhora

Nos há de salvar.

 

Restante das Crianças Participantes

Àquela Senhora

Nos há de salvar.

 

Crianças que Conduzem o Terço

8. Nos há de salvar

E de mostrar Deus também

Ao reino da glória

Para sempre, amém.

 

Restante das Crianças Participantes

Ao reino da glória

Para sempre, amém.

 

Todos os dados que coletei na pesquisa que realizei há anos atrás, em Montenegro, têm ratificado a grande riqueza cultural da Região do Vale do Caí e, em especial, posso dizer, de Montenegro. O Terço Cantado é apenas um, dentre os tantos fatos da manifestação popular que comprovam esta afirmação. Quem tiver a oportunidade, valerá a pena conhecer!

 

 

Referências:

 

CÂMARA CASCUDO, Luis. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 5ª ed., 1984.

 

SOUZA, José Geraldo de. Folcmúsica e liturgia. Rio de Janeiro: Editora Vozes,

1966.

 

WOLFFENBÜTTEL, Cristina Rolim. A música na região de Montenegro. Porto Alegre: Mercado Aberto/FUNDARTE, 1996.