O terço cantado
Cristina Rolim Wolffenbüttel
A religiosidade popular na Região de Montenegro é bastante marcante. Várias são as maneiras utilizadas pelas comunidades, a fim de propagar as tradições e, acima de tudo, garantir a perenidade das crenças locais. O Terço Cantado pode exemplificar esta afirmação. Espécie de cerimônia religiosa, o terço é coordenado por um capelão local que dirige o grupo de rezadores, puxando os cantos e controlando cada momento do terço (CÂMARA CASCUDO, 1984; SOUZA, 1966).
O Terço Cantado é uma manifestação religiosa de origem portuguesa que consiste na realização de orações rezadas e cantadas, tanto por homens quanto por mulheres. Não há um local determinado para a realização do Terço. Este pode ser feito em cemitérios, no caso de um enterro ou em época de finados, em casas de parentes do falecido, em igrejas e capelas, enfim, onde fique melhor para a comunidade. Além de o local não ser pré-determinado, as datas de acontecimento também são variadas. Pode ocorrer um terço para missa de 7º dia de falecimento, de mês, de seis meses, de um ano, de aniversário do falecido ou de aniversário do falecimento.
Quando o terço acontece em um enterro, uma terceira parte é acrescida à manifestação, o chamado Oferecimento Final. Neste oferecimento, o grupo reúne-se perto do caixão do falecido entoando canções chamadas incelências, que são em número de treze canções. As incelências ou, como é mais correto gramaticalmente, excelências, são cantos entoados para moribundos ou mortos. O canto é responsorial, sendo que o capelão e um acompanhante entoam a parte inicial. O canto responsorial é um tipo de canto coletivo no qual uma voz entoa uma parte da canção (o que pode ser realizado por algumas pessoas) e as demais vozes respondem a esta. Abaixo é apresentada a incelência, sendo esta a parte do Capelão e Acompanhantes.
Primeira Incelência, ai
Senhora “das fora”,
Visitando as almas
Que vão para a glória.
Depois que o capelão e seus acompanhantes entoam a estrofe – que poderia ser considerada a primeira parte, ou a parte A da canção – o lote realiza uma espécie de resposta, entoando a parte B. Esta parte, a exemplo dos cantos do capelão, repetir-se-á sempre a mesma, até a 13ª incelência.
O reino da glória
Para sempre, amém.
Depois de rezadas as doze estrofes das incelências, o terço é finalizado, com a menção às treze incelências. A canção entoada pelo capelão e acompanhantes resulta do seguinte:
As treze Incelência
“Pidimos” também.
O reino da glória
Para sempre amém.
Há anos atrás, em meados de 1993, tive a satisfação de entrevistar o Senhor Juceli Edevin da Mota1, conhecido como “Dega”, de Muda Boi, na região a qual denominei em minha pesquisa, Região de Montenegro (WOLFFENBÜTTEL, 1996). Na ocasião, ele explicou-me tudo sobre o terço cantado. Confesso que fiquei emocionada! Ao comentar comigo sobre as características da manifestação e sobre como a mesma acontecia, observei muita emoção em seu relato. De acordo com Dega, ele recebeu a “incumbência” de organizar o Terço Cantado de seu pai, no leito de morte! Ao relatar este fato, com visível emoção, ele chorou! Este fato mostra o quanto o terço Cantado é importante para a comunidade e, com certeza, para ela que a comandava.
Conforme relatos de Dega, o início da manifestação é marcado pelo toque de uma sineta, efetuado pelo capelão. Em seguida, todos fazem o sinal da Cruz, dizendo: “Em nome de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Amém”.
Depois, todo o terço é rezado, sendo que o capelão coordena sua realização, utilizando-se de um rosário. Quando o terço é finalizado, todos se ajoelham, o capelão toca a sineta e todos rezam a oração “Salve Rainha”. Esta é a parte inicial do evento, apenas rezada, sem a presença dos cantos.
Em seguida, todos ficam em pé e entoam a canção do “Anjo da Guarda”, que é entoado em forma responsorial. Esta maneira de cantar caracteriza-se por ser um canto coletivo no qual uma voz – neste caso o capelão e os acompanhantes – fazem um chamamento à resposta das demais vozes – neste caso, o lote. Deste modo, o capelão e os acompanhantes entoam o tema inicial da canção “Anjo da Guarda” e, em seguida, entra a outra voz – do lote – entoando uma resposta. É, assim, um jogo musical de “perguntas e respostas”, daí o nome responsorial.
Meu Anjo da Guarda, ai
Bem aventurado
De tanto convosco
Me tira, ai, os pecados.
E eu tanto convosco,
Me tira o pecado.
Após o canto “Anjo da Guarda”, todos rezam as orações “Pai Nosso” e “Ave Maria” passando, a seguir, ao canto “Oração de Nossa Senhora”, que também é responsorial. Nesta canção, o capelão e os acompanhantes entoam os versos iniciais, os quais são finalizados pelo lote.
Rezemos o terço
Da Virgem Maria
Que na vida e na morte
Será nossa guia.
Que na vida e na morte
Será nossa guia.
Para o conhecimento de todas as estrofes da “Oração de Nossa Senhora”, explicita-se os mesmos a seguir. Destaca-se que a forma de entoá-lo persiste como responsorial.
CAPELÃO E ACOMPANHANTES
2 Oh! Virgem! Oh! Virgem!
Quem Deus escolheu
Para ser mãe sua
Por ela nasceu.
LOTE
Para ser mãe sua
Por ela nasceu.
CAPELÃO E ACOMPANHANTES
3 Por ela nasceu
Por nosso bom Jesus
Salvai a todo mundo
Vinguemos a Cruz.
LOTE
Salvai a todo mundo
Vinguemos a Cruz.
CAPELÃO E ACOMPANHANTES
4 Vinguemos a Cruz
Do imenso Senhor
Deus fez o Divino
Seu mundo formou.
LOTE
Deus fez o Divino
Seu mundo formou.
CAPELÃO E ACOMPANHANTES
5 Seu mundo formou
Para nos salvar
E nós tão ingratos
Sempre a pecar.
LOTE
E nós tão ingratos
Sempre a pecar.
CAPELÃO E ACOMPANHANTES
6 Sempre a pecar
Sem nenhuma emenda tida
Ninguém considera
Que há de morrer.
LOTE
Ninguém considera
Que há de morrer.
CAPELÃO E ACOMPANHANTES
7 "Havemos morrer"
Que é para repousar
Aquele Senhor que
Nos há de julgar.
LOTE
Aquele Senhor que
Nos há de julgar.
CAPELÃO E ACOMPANHANTES
8 Nos há de julgar
Pedimos a Deus também
E o Reino da Glória
Para sempre. Amém.
LOTE
E o Reino da Glória
Para sempre. Amém.
Outros cantos seguem-se à “Oração de Nossa Senhora”, antes de se ouvir um novo toque da sineta. O terceiro canto é o “Benedito, Louvado Seja”, que segue as mesmas características de repetição dos versos finais.
Bendito, louvado seja, ai
O Rosário de Maria,
Se Deus não viesse ao mundo, ai
De nós o que seria.
Se Deus não viesse ao mundo, ai
De nós o que seria.
Segue-se a canção “Benedita Paixão” como o quarto canto do Terço Cantado. Constitui-se de dezoito estrofes compostas de dois versos. A forma de cantar persiste em responsorial, tendo seu início com o capelão e acompanhantes, seguidos na resposta pelo lote.
1 Bendito, louvado seja, ai, paixão do Redentor, ai.
2 Para nos livrar das “culpa”, padeceu por nosso amor, ai.
3 Padeceu grandes tormentos, ai, trabalhou penas e dor, ai.
4 Derramou seu santo sangue, ai, pra "remir" os “pecador”, ai.
5 "Contritou" arrependido, ai, grande dor no coração, ai.
6 Aqui estamos aos pés de Cristo, ai, pedindo a Deus perdão, ai.
7 Senhor Deus, dai-nos auxílio, ai, a união, paz e concórdia, ai.
8 Para que dizemos todos, ai, Senhor Deus de misericórdia, ai.
9 Misericórdia, ai meu Deus, de misericórdia, ai.
10 Misericórdia Vos pedem, ai, esses “grande pecador”, ai.
11 Pelas Vossas cinco chagas, ai, por Vosso divino amor, ai.
12 Por Vossa morte e paixão, ai, por sua paixão, Senhor, ai.
13 Padre Nosso, Ave Maria, ai, rezemos com devoção, ai.
14 Pelas mais benditas “alma”, ai que no purgatório estão, ai.
15 Padre Nosso, Ave Maria, ai, rezemos com alegria, ai.
16 Para que seja convosco, ai, meu Jesus, José e Maria, ai.
17 Pra Senhora “oferecemo”, ai, estas nossas “devoção”, ai.
18 Se vão para a glória, ai, Vossa seja a nossa salvação, ai.
Finalizada a canção “Bendita Paixão”, o capelão faz soar a sineta. Imediatamente, todos se ajoelham e, sempre com muita devoção, cada um bate com a mão direita em seu peito. Este gesto é uma espécie de ato penitencial que todos fazem em “busca do perdão dos pecados”, tanto do ente querido falecido, quanto pelos próprios pecados. A cantiga também é responsorial, e os versos finais são repetidos pelo lote. A seguir, a letra desta canção de grande fervor.
Senhor Deus!
Misericórdia!
Senhor Deus!
misericórdia.
Senhor Deus!
Eu pequei, Senhor!
Misericórdia!
Senhor Deus!
Pelas “Dor” de nossa mãe, Maria Santíssima!
Misericórdia!
Senhor Deus!
E, para finalizar o Terço Cantado, o capelão inicia o canto “Benedito”, utilizando um recurso de bater palmas para que todos se levantem, visto que todos estavam ajoelhados entoando a canção “Senhor Deus”, anterior. É um canto mais alegre, em comparação aos anteriores.
Bendito, louvado, seja.
O santíssimo sacramento.
Da puríssima Conceição.
Da Virgem Maria, Senhora nossa.
Concebida sem pecado
Original do primeiro instante.
Do seu seio, Senhor.
Amém, Jesus!
Há anos atrás, quando eu tive a satisfação de pesquisar o Terço Cantado, observei a grande importância que esta manifestação tem para a comunidade. Destaco, neste sentido, as localidades de Muda Boi – a partir da qual apresentei todo este relato, Serra Velha, Sobrado e Vapor Velho.
Em Serra Velha merece destaque a manifestação que acompanhei em meados do ano de 1993, na Escola Municipal de Ensino Fundamental Militão José de Azeredo, quando a comunidade escolar, reunida, fervorosamente praticava o terço. Figurava como propulsora da manifestação a diretora, Professora Rosângela da Rosa que, congregando professores, estudantes, pais e familiares, incentivava a realização do Terço Cantado. Para caracterizar a contribuição desta escola é apresentada, a seguir, a “Oração de Nossa Senhora”. A melodia segue a mesma apresentada anteriormente, diferindo a parte poética.
Crianças que Conduzem o Terço
1. Rezemos o terço
Da Virgem Maria,
Que na vida e na morte
Será nossa guia.
Restante das Crianças Participantes
Que na vida e na morte
Será nossa guia.
Crianças que Conduzem o Terço
2. Oh! Virgem! Oh! Virgem!
Que Deus te escolheu
Para ser Mãe sua,
Pois ela nasceu.
Restante das Crianças Participantes
Para ser Mãe sua,
Pois ela nasceu.
Crianças que Conduzem o Terço
3. Pois ela nasceu
Por nosso bom Jesus
Salvai a nós todos
Em “termo” da Cruz.
Restante das Crianças Participantes
Salvai a nós todos
Em “termo” da Cruz.
Crianças que Conduzem o Terço
4. Em “termo” da Cruz
Oh! De Deus sem temor
Deus como Divino
Seu mundo formou.
Restante das Crianças Participantes
Deus como Divino
Seu mundo formou.
Crianças que Conduzem o Terço
5. Seu mundo formou
E foi para nos salvar
E nós tão ingratos
Sempre a pecar.
Restante das Crianças Participantes
E nós tão ingratos
Sempre a pecar.
Crianças que Conduzem o Terço
6. Sempre a pecar
Sem nenhuma “imenda” ter
Ninguém considera
Que “havemos” de morrer.
Restante das Crianças Participantes
Ninguém considera
Que “havemos” de morrer.
Crianças que Conduzem o Terço
7. Que “havemos” de morrer
Que conta vamos dar?
Àquela Senhora
Nos há de salvar.
Restante das Crianças Participantes
Àquela Senhora
Nos há de salvar.
Crianças que Conduzem o Terço
8. Nos há de salvar
E de mostrar Deus também
Ao reino da glória
Para sempre, amém.
Restante das Crianças Participantes
Ao reino da glória
Para sempre, amém.
Todos os dados que coletei na pesquisa que realizei há anos atrás, em Montenegro, têm ratificado a grande riqueza cultural da Região do Vale do Caí e, em especial, posso dizer, de Montenegro. O Terço Cantado é apenas um, dentre os tantos fatos da manifestação popular que comprovam esta afirmação. Quem tiver a oportunidade, valerá a pena conhecer!
Referências:
CÂMARA CASCUDO, Luis. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 5ª ed., 1984.
SOUZA, José Geraldo de. Folcmúsica e liturgia. Rio de Janeiro: Editora Vozes,
1966.
WOLFFENBÜTTEL, Cristina Rolim. A música na região de Montenegro. Porto Alegre: Mercado Aberto/FUNDARTE, 1996.